O Brasil é hoje a nação com o maior número de seguidores do Espiritismo, doutrina criada no século 19 por Allan Kardec. Segundo o Censo 2010 do IBGE, cerca de quatro milhões de pessoas se declararam espíritas. O número, no entanto, é considerado subestimado, uma vez que o instituto considera apenas quem se afirmara especificamente kardecista. Especialistas acreditam que o total de simpatizantes já supere os 30 milhões. O cenário, no entanto, era muito diferente no início da década de 1930, quando, em uma Feira de Santana (BA) provinciana e predominantemente católica, as primeiras visões começaram a amedrontar o pequeno Divaldo Pereira Franco.
Algumas eram terríveis. Por vezes tão cruéis, que o menino só conseguia adormecer se refugiando na cama dos pais, mãos dadas à mãe. Outras, mais amorosas, tentavam consolá-lo ou enviar recados. Uma das primeiras a se identificar foi sua avó, Maria Senhorinha. O espírito apareceu ao menino de apenas quatro anos, pedindo que chamasse a filha.
Divaldo não sabia o significado da palavra avó ou avô. Todos haviam falecido antes de seu nascimento. Dona Ana também não conheceu a mãe, morta por complicações no parto. Como o garoto insistisse, a mãe o levou correndo à casa de uma irmã mais velha, Edwirges. Lá, a tia pediu uma descrição da mulher, o que Divaldo fez nos mínimos detalhes.
A descrição batia com a imagem que Edwirges guardava de sua mãe, o que acabou por convencer também à irmã mais nova. Desse momento em diante, Divaldo ganhou o apoio irrestrito de Ana. Com o pai, as coisas não foram tão fáceis. Por anos, o homem simples, comerciante de fumo, teve um único aliado para fazê-lo a parar de mexer “com essas coisas” de falar com os mortos: um velho chicote feito de cipó de goiabeira.
O primeiro contato com o Espiritismo ocorreu em 1944. Mal tinha se recuperado de uma tragédia familiar envolvendo o suicídio da irmã Nair, o rapaz enfrentou novo golpe. Um de seus irmãos, José, morreu violentamente, vítima de um aneurisma. Em poucas horas, Divaldo deixou de andar, acometido por uma paralisia que o deixou preso à cama por mais de seis meses.
Acabou curado por uma famosa médium de Salvador, Ana Ribeiro Borges, famosa por ajudar em casos assim, “inexplicáveis”. Assim que o visitou, dona Nanã, como era conhecida, viu que o problema era espiritual. Seria reflexo da presença perturbadora do próprio José. Aturdido pela morte inesperada, o moço estaria preso ao único na casa portador de mediunidade ostensiva. No mesmo dia, voltou a andar.
A partir daí, Divaldo iniciou suas atividades como espírita e não parou mais. Mudou-se para Salvador (BA) e abraçou em tempo integral a doutrina e as ações de caridade por ela pregadas. Em maio, ao completar 86 anos, celebra também mais de 65 anos ininterruptos dedicados à população carente e à atividade mediúnica.
Excelente orador, já fez quase 15 mil palestras no Brasil e em 64 países. Psicografou mais de 250 livros que, juntos, venderam 10 milhões de exemplares. Nunca ficou com um único centavo das vendas. Toda a renda é doada, em cartório, à sua maior obra: a Mansão do Caminho, entidade beneficente fundada há 60 anos em Salvador.
O complexo, obra social do Centro Espírita Caminho da Redenção, fundado em 1947, tem 83 mil metros quadrados, mais de 50 edificações e atende diariamente a quase 5 mil crianças e jovens de famílias de baixa renda do bairro Pau da Lima, um dos mais carentes e violentos da capital baiana. Possui creche, escolas de ensino fundamental e médio e cursos complementares. Mantém ainda moderno centro de parto normal e laboratório de análises clínicas. No total, emprega mais de 300 funcionários e 400 voluntários em caráter permanente.
Os trabalhos assistenciais começaram na região central da cidade com o recolhimento de órfãos. Centenas foram chegando, jogados às portas da instituição, em latas de lixo. Com o tempo, a casa ficou pequena e foi preciso mudar-se para um terreno maior. Com a ajuda de colaboradores, Divaldo e Nilson de Souza Pereira, seu braço direito, compraram o terreno de Pau da Lima, à época um grande aterro sanitário, e construíram tudo, praticamente com as próprias mãos.
As crianças não paravam de chegar. Divaldo adotou ele próprio mais de 600. O médium também não para. Visita anualmente dezenas de países, dedicando quase 200 dias por ano às palestras. Nunca faz turismo. Geralmente hospeda-se em casas de amigos, cumpre a agenda apertada de palestras e entrevistas e tenta seguir com sua rotina psicografando, quase sempre, madrugada à dentro.
Laços com o mestre
Divaldo é considerado hoje o sucessor natural de Chico Xavier. No último dia 15 de fevereiro, repetiu, pela primeira em quase duas décadas, algo que fez religiosamente todos os anos desde que conheceu o médium mineiro em 1949: sentou-se à mesa do centro espírita fundado por Chico na cidade de Uberaba (MG) e falou.
A palestra emocionou o público que superlotou o pequeno Grupo Espírita da Prece. Sempre que estava na cidade, para onde Chico se mudou em 1958, e mesmo antes, em Pedro Leopoldo (MG), Divaldo era hóspede do maior expoente do espiritismo brasileiro. Invariavelmente, o mineiro o chamava para participar das reuniões e comentar alguma passagem do Evangelho, quase sempre escolhida ali mesmo, na hora. Em seguida, ambos psicografavam.
Foi Chico quem orientou o ainda jovem e iniciante garoto de Feira de Santana. Inseguro com sua mediunidade ainda sem controle, Divaldo escreveu para aquele que já era o mais conceituado correio dos espíritos no mundo pedindo ajuda.
A recomendação para que enviasse a carta veio também do outro lado da vida. O Espírito Humberto de Campos, que o ajudara em sua primeira palestra em 1947, foi quem deu a dica:
- Escreva para Chico Xavier. Ele vai te ajudar. Eu me encarrego de avisá-lo.
A amizade entre os médiuns foi imediata e as visitas a Minas repetidas anualmente. Até que, em 1962, precisou se afastar. Espíritas próximos a Chico acabaram por dificultar os encontros. Temendo tornar-se o que chamou de “pedra de tropeço para quem quer que seja”, Divaldo resolveu se recolher. E não insistiu. Voltou-se àquilo que defende: a aposta em um espiritismo que recupera os ideais dos primeiros cristãos. “O movimento está muito intelectualizado. Perdeu-se aquela coisa de trabalhar diretamente com os necessitados. Há muitas campanhas de arrecadação, mas ninguém quer pegar no pesado”, afirma.
Divaldo pega. Mesmo aos 86 anos, quando não está viajando, atende diretamente os assistidos pela Mansão do Caminho, resolvendo os casos mais graves. Vai às escolas, ao posto de saúde, ajuda na triagem. Durante muito tempo, à noite, quando todos da instituição já estavam dormindo, saía às escondidas para visitar àqueles mais necessitados, nas ruelas de Pau da Lima. “Se eu sair em grupo, quem faz caridade são os outros, não eu.”
Mesmo a fama de violência do bairro não o assusta. “Nestes anos todos, nunca tivemos um furto. Os chefes da comunidade nos respeitam, porque sabem que aqui recebemos e cuidamos de suas mulheres e filhos.”
Tudo isso sempre inspirado em seu grande modelo: Chico Xavier. “Ele era insuperável.” Após quase 20 anos afastado do Grupo Espírita da Prece, no final de 2012, veio o convite. Era hora de voltar ao centro que sempre amou.
Amigos próximos sabem de onde partiu a inspiração para o reencontro.
Perfil
A jornalista Ana Landi está escrevendo a primeira biografia jornalística de Divaldo, uma personalidade que transcende o movimento espírita, para ser lançada pela Belaletra Editora neste ano. No livro, estarão pesquisas e entrevistas com o médium e com pessoas que convivem com ele. Por decisão de Ana, os direitos autorais da obra serão cedidos em caráter permanente à Mansão do Caminho, obra social do Centro Espírita Caminho da Redenção.
Divaldo volta a Uberaba
Divaldo em Uberaba
Divaldo em Uberaba - Visita a Casa de Chico, hoje museu. Ao lado Eurípedes, filho adotivo de Chico
Divaldo em Uberaba - Grupo Espírita da Prece lotado (Pessoas que não conseguiram entrar)
Matéria originalmente publicada no jornal “Diário de São Paulo”
Caderno Viva, pags; 14 e 15 de 03-02-2013, Autoria de Ana Landi
Fotos Divulgação e de Edgard Patrocinio.
(Texto e fotos recebidos em email de Ana Landi)